quarta-feira, 13 de junho de 2007

Piratas


O Rique havia feito o mesmo que eu e minha mulher, bem antes de isso virar modismo: abandonou a cidade grande com a intenção de redescobrir como a vida pode ser paradisíaca longe da correria e da agitação. Ali, na praia do Bugio, além de caixa do Banco do Estado, o que ele chamava de emprego, tinha por aquilo que ele chamava de profissão a regência de um coral de alunos da Escola Duque de Caxias. Era um cara destoante para a pequena vila de pescadores que, mesmo um pouco descaracterizada com o turismo, ainda mantinha as suas tradições e preconceitos. Ele era muito ativo, alegre, homossexual assumido e brincalhão, uma pessoa muito querida pela comunidade e muito popular. Grandalhão, com seus quase dois metros de altura e traços rudes, impressionava pelo contraste entre o seu físico e a sua personalidade gentil e agradável.
Quase todos os domingos ele ia almoçar lá em casa, chegava cedo e depois de comer, jogávamos sinuca até as três da tarde, horário em que saía para o ensaio.
Em um desses domingos, quando fomos à praia comprar peixe, ele começou a agir de forma estranha. Um sujeito veio à praia com seu 'jet-ski' e ele foi lá puxar conversa.
Em um primeiro momento, achei que fosse um conhecido seu. Logo a seguir fiquei incomodado, porque pensei que tinha ido lá para dar uma cantada no turista, vulgaridade que ele não costumava fazer. Só que não era nem uma coisa nem outra. Ele começou a fazer perguntas sobre a máquina mesmo. Ao chegar perto, percebi que o rapaz começou a ficar irritado, porque o Rique insistia em perguntar onde é que iam as velas ou os remos. Eu conhecia bem o meu amigo, não era mais uma de suas gozações porque ele não costumava fazer isso com estranhos. Com uma mão puxei-o pelo braço e com a outra apanhei os peixes e carreguei a todos para casa com os olhares vidrados, inclusive o meu amigo. Como logo depois ele voltou ao normal, eu esqueci o incidente.
Na mesma semana, o Rique veio falar comigo para ver se eu conseguia o auditório municipal, pois o grupo não suportava mais ensaios e estava exigindo uma apresentação para mostrar ao público o trabalho. Como Bugio ainda não havia sido promovida a município, precisávamos ir à sede da cidade, falar com o prefeito, o Silas, que tinha sido meu colega na faculdade.
O gabinete dele ficava no primeiro andar. A prefeitura era uma construção antiga que há mais de duzentos anos vinha sendo usada como prédio público, já tinha sido cadeia, alfândega e agora se falava em transformar tudo em museu. Ao entrarmos na sala, o Silas foi todo sorrisos, aliás nunca consegui enxergá-lo com outra profissão além da de político e de bebedor de cerveja com a sua proeminente barriga. Apresentei o Rique e sentamo-nos em belas cadeiras de couro. Conversa vai, conversa vem, e o Silas pareceu bem interessado no coral.
Tinha bons motivos para isso. Naquela época já existia a campanha para a promoção do distrito de Bugio a município. Promover um evento cultural, além de contribuir para a integração da cidade, ainda promoveria o Silas como político.
Tudo ia pelo bom caminho até que lá pelas tantas eles começaram a se olhar com os olhares fixos. A conversa parou de súbito. O Silas levantou-se e gritou com um sotaque estranho:
"Como ousas vir-te cá, Ambrósio d'Oliveira? Que fizeste com a nau do Senhor Meu Rei dada-te em confiança para saqueares os holandeses? E por que razão não voltaste a Cascais, ó patife excomungado?"
Levei um susto porque em uma fração de segundo, o Silas apanhou um punhal de abrir cartas que estava sobre a mesa e o Rique saltou pela janela. Corri para ver se ele tinha se machucado da queda de mais de quatro metros, mas não, ele estava lá de pé, na rua, parado. Acenou. Foi então que eu percebi o perigo que eu corria com aquele louco armado com um punhal atrás de mim. Virei-me rapidamente e o Silas estava sentado tranqüilamente em sua poltrona como se nada tivesse acontecido. A secretária entrou, assustada com os gritos, mas quando perguntado, o Silas disse que não tinha acontecido nada. Só perguntou por que o meu amigo havia ido embora. Achei que era gozação para cima de mim, despedi-me e saí fazendo mil e uma suposições. Da parte do Rique foi o mesmo: falou que ele jamais iria pular de uma janela tão alta e coisa e tal...
No fim-de-semana seguinte, o Silas telefonou lá para casa para saber como havia ficado aquele negócio do coral, pois o auditório já estava disponível. Convidei ele para a nossa peixada de domingo, para botar os dois cara-à-cara e tirar a limpo aquela história. Perguntei mais uma vez de onde é que ele conhecia o Rique, mas ele disse que eu é que os tinha apresentado. Comecei a achar que o Silas era bicha também e que só não assumia por causa da política. Deviam se conhecer a tempos. Ele era divorciado, tinha dois filhos, mas nunca se sabe.
Chegou para o almoço quase ao meio-dia, pouco depois do Rique . Contamos algumas anedotas regadas a cerveja e tudo parecia normal. Lá pelas tantas, para meu espanto e de minha mulher, O Silas saltou sobre o Rique e o derrubou da cadeira. Não era brincadeira, não, o coitado bateu com a cabeça forte e fez um barulhão. Novos gritos:
"Peguei-te, Ambrósio! Pensaste que no degredo ias escafeder-te? Levar-te-ei para a corte onde serás enforcado, tua morada será salgada e tua geração amaldiçoada!"
Tentamos separá-los, mas parecia nem perceberem que estávamos ali, o Rique só falava:
"Esperai, capitão Pedro Reis, pelo amor do Spiritu Sanctus, deixa-me falar-vos. Eu vos imploro. Comigo sereis um cristão rico. Capturamos um galeão com mais de mil e quinhentas peças de prata de Potosí. Quando voltávamos, uma borrasca arteira nos apanhou e jogou-nos na costa. Sobrei só eu da tripulação, mas consegui salvar o tesouro. Pela caridade de D'us, não tive culpa, poupai-me!"
No mesmo instante em que conseguimos separá-los, os dois tiveram um sobressalto. O Rique levou a mão à cabeça e perguntou o que havia acontecido. Pensou que tinha desmaiado.
Ao contarmos o que havíamos visto, ficaram estupefatos, o Silas pediu para não falarmos com ninguém sobre isso, iriam achar que ele estava louco e isso seria péssimo para a sua carreira. O almoço foi tenso para nós e com sorrisos amarelos da parte deles.
Durante as despedidas, tiveram mais uma recaída. Ambos com os olhos vidrados ficaram se olhando até que o Rique falou “Vamos dividir?”, voltaram ao normal e depois foram embora.
Com tudo isso, o Silas e o Rique ficaram amigos. O coral apresentou-se com muito sucesso e o Silas voltou para a antiga esposa. Comemoraram o recomeço com um belo jantar ao qual fomos todos convidados.
Na casa do Silas tinha uma coleção enorme de pratarias antigas, todas pretas como se ninguém nunca tivesse as polido. O Rique tinha uma coleção igual, mas não sabia de onde tinha vindo. Por intermédio da sua esposa fiquei sabendo que aquele lixo todo havia sido conseguido durante o período de separação, mas o Silas também não sabia de onde havia vindo.
Talvez de família.

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