domingo, 1 de julho de 2007

História de Pescador

Há muitos e muitos anos nasceu na ilha aquele que seria conhecido por Pescador.
Muitas circunstâncias marcaram a sua chegada ao mundo. Sua mãe foi pega pelas dores do parto em pleno Sambaqui, em uma época que por ali ainda vagavam os espíritos dos guerreiros índios saídos sorrateiramente das suas urnas funerárias. O próprio sangue que ela devolveu à terra sob o facho inclemente da lua cheia, um dia havia sido corpo daqueles guerreiros.
Quando a criança deu o seu primeiro suspiro, uma chuva de estrelas caiu ao mar e apressadamente surgiram atrasadas as três parteiras guiadas pelos gritos e pela luminosidade súbita. O cordão foi cortado, o menino limpo, enrolado na renda recém acabada, o seu primeiro presente. Bebeu o seu primeiro leite com a mãe sentada em um trono de pedra à beira do caminho.
Em posição de reverência, a primeira parteira exclamou:
"Bem-vindo ao mundo, infeliz e aventurado filho do Pai da Terra e da Mãe do Mar Profundo!"
E as outras disseram: bem-vindo.
A segunda disse:
"Bem vindo, alma imortal, corpo que não pode ser morto pelo ódio, nem pela força da natureza e nem pela mão de homem algum!"
"Bem-vindo, bem-vindo", as outras repetiram.
E a terceira:
"Bem-vindo aquele que traz a felicidade, que é o lampejo das estrelas e o elemento dos sonhos."
A mãe chorou, apertou-o contra o peito e sussurrou o bem-vindo.


Pouco se soube da sua meninice. Só sabe-se que era o melhor em tudo. Quando se escondia ninguém achava. Quando corria ninguém pegava. E de todos foi o que cresceu mais rápido.
Quando ia para a armação, conseguia ver os cardumes que ninguém via. Na praia a sua tarrafa sempre saía da água pulando de peixes. No Mar de Dentro, o seu barco voltava carregado, no Mar de Fora, nunca virava.
Bebia o suficiente para tornar-se a melhor companhia, nunca em excesso. No jogo, perdia quase sempre, não que não tivesse sorte: ele deixava ganhar.
Era o rapaz mais lindo. As senhoras elogiavam-no, as mulheres cobiçavam e as meninas almejavam. No entanto ele era alheio. Ele era do mundo como o mar, o vento ou a gaivota que passa. A sua abundância não era furtada, mas devolvida. Ele dava-se.
Um dia, um velho cego que via com os olhos da alma, veio até a vila e falou:
"Pescador, cego és tu que está fora do mundo. Tens saúde, fartura e cavalgas a alegria, no entanto não tens a felicidade porque és filho da morte. Tu não passarás porque não descobriste a força que move a vida."
Intrigado, ele tocou o rosto do cego que, para a surpresa geral, passou a ver. Este lhe beijou e se foi.
Depois disso uma menina picada mortalmente por cobra cuspiu o veneno quando foi posta em seus braços. Agradeceu e se foi. Um aleijado andou e sua presença e se foi. Um cão de estimação morto acordou, viveu alguns anos e depois morreu para sempre.
Para o pescador os cardumes de tainhas eram cada vez maiores e a natureza cada vez mais o proclamava. Quando ele via mortes, percebia que elas eram serenas como a velhice e suaves como o tempo. O mar batia nas rochas. Passavam os barcos e os navios ao longe. As luas sucediam-se ao sol. As figueiras cresciam.
Tudo o que era fugaz passou por ele até o fastio. Passou a sua família, os seus companheiros de pesca. Lutou em muitas guerras até ao ponto de esquecer as suas glórias. Muitos barcos viraram tábuas, pedras viraram praias e praias viraram mar.
Ele era um fantasma da eternidade. Atirou-se em ondas profundas, mas foi dar em terra. Enterrou-se na areia, mas o vento o descobriu. Lutou, mas nunca houve bala ou espada certeira.


Em uma certa noite vagou pela ilha, miseravelmente infeliz, só com a natureza horrivelmente exuberante e vazia ao seu redor. Um tapete de flores cheirosas acolhia os seus passos e uma soberana lua cheia iluminava o seu caminho. O pescador chegou na praia, bem próximo ao sambaqui em que nascera.
Surgiu uma mulher que se banhava no mar. Era bela e de aspecto feroz. Não era ninguém da vila. Parecia ter atravessado todo o oceano para vir a ter com ele.
Os seus cabelos eram algas, seus olhos inchados, a sua pele escamosa e o seus pés planos. Sem uma palavra, atirou-se sobre ele e se amaram, fundindo com a areia e sumindo, virando areia da praia. Caiu uma chuva de estrelas no mar.

Uma luz passou a brilhar sempre que alguém se amava no local em que o Pescador e a Mulher do Mar desapareceram, por isso aquela ponta de praia foi chamada de Ponta da Luz.
Conta-se também que os amantes, no silêncio profundo dos seus gozos, podem ouvir o eco das vozes das três parteiras, que desde sempre andaram por ali: "Vão, Pescador e Morte, sábia regente do amor, passem como tudo tem que passar!"

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