quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Anjo da Morte

Museu da Memória Nacional? Vergonha nacional!
Como podiam ser tão estúpidos? Colocarem bem na marquise a primeira câmera da Companhia Ática Cinematográfica. Foi a câmera que filmou toda uma história do cinema nacional, desde os primórdios, os filmes mudos de Roberto Marcos até a visita da Grace Kelly aos estúdios! E agora estava ali... Sem uma placa indicativa da importância que teve. Num tripé de concreto, sujeita ao sol, ao granizo e aos cocôs de passarinho.
Eu precisava fazer alguma coisa e era urgente, antes da primeira chuva. Os jovens cinéfilos como eu não podiam admitir um tesouro cultural exposto daquela forma. Pedir providências urgentes, mas para quem? Em um telefonema anônimo reclamando da situação para o museu de nada adiantou, pois o diretor garantiu que o arquiteto sabia o que estava fazendo e que a câmera estaria em perfeito estado de conservação. O que os arquitetos sabem do cinema nacional? Será que ele sabia que as presilhas de fixação da lente eram feitas de bronze e sem uma conservação perfeita elas ficam verdes, corroem-se e em poucos anos as lentes cairiam no chão? E será que ele notou os autógrafos de todos os atores que participaram do filme "O Anjo da Morte". Não, é claro que não, escritos no tempo da caneta-tinteiro, já deviam estar bem apagados, só quem sabia é que poderia notar...
Planejei tudo para a manhã seguinte. Deixar aquela preciosidade mais uma noite sujeita ao orvalho não me agradava muito, mas cedinho não passava ninguém na rua e era a melhor hora de roubar.
Fui com todo o cuidado. Subir na marquise não foi muito difícil. Difícil foi tirar a câmera do pedestal. Os ignorantes tinham aparafusado dentro do tripé de concreto, tive que deixar o suporte lá e tirar só a parte de cima que na verdade era o que interessava. Até aí deu tudo conforme o planejado, só o que eu não contava era com o peso destas câmeras antigas. Como é que eu iria descer e carregar a câmera ao mesmo tempo. E ainda sem ninguém me ver? Já estava no lusco-fusco do dia e dali a pouco começaria o movimento na rua, o vigia poderia sair e dar uma olhada na marquise e aí como é que ficaria?
Não tive muito tempo para pensar essas coisas, ouvi gritos vindos da rua. Pegaram-me, pensei. Um cara baixinho passou na calçada e ficou apontando para cima. Na hora não soube como ele me viu, pois eu estava bem escondido atrás da câmera. Fui até a ponta da marquise falar com ele, para ver se tinha chance de me safar, mas não, ele continuou gritando, chamando a atenção e apontando para cima. As janelas dos moradores da redondeza começaram a se abrir e eu fiquei apavorado. Deu vontade de me atirar no pescoço daquele sujeito, será que ele não viu que eu estava fazendo um bem?
Surpresa! Não era para mim que ele estava apontando. No alto do prédio do museu estava um sujeito de terno preto caminhando no peitoril. Um louco, provavelmente. Será que ele ia saltar? Quanto a ele, eu não sei, mas eu coloquei a câmera no tripé, agarrei a borda da marquise, saltei no chão e fiquei olhando para cima como a pequena multidão de pijamas que se aproximava.
O homem parou na quina do prédio, levantou os braços ao céu e ficou lá, olhando com a cabeça para cima como se estivesse rezando, não dava para ouvir o que ele falava, pois ele estava no alto do prédio. Saltou, para o susto de todos, saltou como um mergulhador na piscina, sem expressão de dor ou sofrimento, mais parecia estar fazendo algo grandioso. Caiu, caiu. Quatro andares, mas não foi até o chão, ficou flutuando a alguns centímetros, bem abaixo da câmera sob a marquise em que eu estava antes. O susto foi maior ainda.
"Eu sou o Anjo da Morte", falou, "eu vim para encontrar a única alma boa escolhida pelo Senhor e depois destruir esta cidade".
Pânico geral!
Eu havia visto o filme. Era um dos meus favoritos, grandes atores, mas o protagonista parecia mais um canastrão perto do Anjo da Morte verdadeiro. Os olhos dele eram vermelhos. Dava para ver que não era maquilagem. Ele não tinha asas como as do Antônio Goulart, que fez o papel do Anjo e que no fim se apaixonou pela Maria José, a vendedora de flores representada pela Raquel de Medeiros. Não, não. Este Anjo da Morte não parecia dobrar-se a paixões. Ele parecia estar decidido a cumprir a sua missão. Como eu sabia que não havia lugar para onde correr, fui o único a ficar parado, olhando tudo e esperando ele cuspir o fogo e o enxofre.
Fiquei apavorado quando ele veio falar comigo. Olhou nos meus olhos e perguntou naquela sua voz sepulcral:
"Você tem fogo?"
Eu não entendi muito bem. Como assim, fogo? O próprio Anjo da Morte, não tem fogo? Que negócio de destruidor de araque é esse? Mas não, eu não tinha fogo, mesmo, eu não fumava ainda naquela época.
"Diabos!", ele falou. "Com esses cortes do orçamento cortaram até as verbas da chama-piloto. E agora, como é que eu vou destruir esses pecadores?"
E eu que nem sabia que precisava de chama-piloto, essas coisas a gente sempre pensa que é mágica, não imagina a tecnologia que tem por trás. Ele continuou:
"Está decidido! A morte virá pelo vento. Um furacão nunca dantes visto, varrerá a iniqüidade do mundo."
Acho que ele até esqueceu de salvar a alma boa que veio buscar porque assim que ele falou isso o vento começou a aumentar. E a aumentar. E ele ali, parado, flutuando no ar.
Aquela ventania toda mexeu com a câmera que eu tinha deixado só apoiada. Só sei que lá pelas tantas aquele trambolho despencou lá de cima, bem na cabeça do Anjo e o Anjo da Morte, morreu. Virou fumacinha e ficaram no chão só as cinzas que logo foram levadas pelo vento e que depois também foi acalmando aos poucos.
Olhei para os lados. Ninguém nas ruas. Peguei a câmera e caminhei até em casa em plena luz do dia. Ninguém viu.
As histórias dessa câmera eu vou contar até pros meus netos!

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