quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Hospedeiros, Parasitas e Considerações sobre o Beco do Liberalismo

O pensamento liberal começou a se destacar das antigas considerações sobre democracia no momento em que principiou a se formar uma classe de comerciantes, ao ponto de relacionarmos o liberalismo com um pensamento eminentemente burguês.
Em paralelo a essa ideia monodimensional a respeito do liberalismo, podemos considerar que no período em que ocorreram as decadências das chamadas sociedades absolutistas, surgiram duas linhas de pensamento. A primeira dessas linhas foi exposta por Benjamin Constant de Rebeque que relacionava o conceito de liberdade com o de propriedade, liberdade serviria para livre negociar. Em oposição, Jean Jacques Rousseau, colocava liberdade como sinônimo de igualdade entre os indivíduos.
Nesse ponto de vista, o pensamento liberal, independente de ser mais tendencioso para o social, ou mais para o mercado, vem nos últimos duzentos anos buscando a resposta das perguntas propostas posteriormente por Jeremy Bentham, de como trazer um maior nível de bem estar e um menor grau de sofrimento aos seres vivos, e conseqüentemente ao homem e à sociedade.
Na busca dessas inquirições, passamos por dois tópicos importantes apontados por Tocqueville, no seu livro “A Democracia na América”, que são a preocupação em evitar uma tirania da maioria e também um despotismo do Estado.
John Stuart Mill nos trouxe uma nova luz sobre a palavra liberdade, antes ligada a um direito natural do ser humano, mas com ele vista como um valor relativo. Com ele, a liberdade deixa de ser vista como um valor individual, mas social, pois:
"Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade." (Stuart Mill, A Liberdade)
Com Stuart Mill, a defesa da liberdade do indivíduo passa a ser sinônimo da defesa da liberdade da sociedade. A legislação não deveria ser coercitiva, mas uma forma de aumentar as oportunidades individuais.
Assim, a discussão liberal paira entre dois extremos de igual poder e antagônicos, a defesa de um estado mínimo e um estado de direitos iguais para todos.
Não sendo esses valores de origem natural ou divina, a discussão liberal versa sobre as questões de poder: o poder civil, proprietário contra o poder dos diversos agrupamentos sociais que participam do processo democrático.

Este conflito nos leva para um beco, e as respostas que nos levam à saída residem num paradigma diverso daquele formulado pelos clássicos.
Existem vários grupos possíveis de poder dentro de uma sociedade, dependendo do ponto de vista a ser tomado.
A forma engeliana-marxista, de origem rousseauísta, divide a sociedade em fortes e fracos. Este escalonamento gera a ideia de classes sociais. Pérfidos empresários tirariam a mais-valia dos pobres operários para enriquecerem as suas custas. Por extensão, isso ocorreria com os malévolos países imperalistas, com a torpe raça branca, com os canalhas moradores das regiões mais industrializadas, com os grandes poluidores, com os insensíveis ocidentais em relação aos muçulmanos sofredores. Conflitos seriam sinônimo de desigualdades.
Esta visão dicotômica, no entanto, aborda um pensamento bastante pobre, ainda que de fácil digestão para as massas, uma vez que não explica diversas outras formas e nuanças existentes nas relações de poder. Maniqueísmos são sempre tão carregados de exceções que são facilmente invalidados por argumentos um pouco mais bem elaborados.
Por via inversa, por exemplo, existe o poder dos fracos. No passado, em reinados de soberanos poderosos, os bobos da corte muitas vezes eram anões, aleijados ou pessoas grotescas. No entanto, por serem considerados, ante a suntuosidade e suposta grandeza dos membros da corte, como coitadinhos ou miseráveis, gozavam de um poder político considerável. Eram os únicos que podiam zombar e criticar impunemente os mais poderosos.
O poder dos fracos é muito cotidiano em todas as sociedades. Quando deixamos de reclamar a um gerente da incompetência de um determinado caixa de supermercado, por exemplo, estamos nos compadecendo com a possibilidade de ele ser demitido ou sofrer sanções. Nós, na nossa grandeza de consumidores, nos auto-reservamos a qualidade de magnânimos, por mais prejudicados que sejamos. O mesmo, em maior escala, se dá em diversos grupos sociais, considerados fracos ou débeis, mas que na vida prática muitas vezes representam poderes consideráveis que influenciam diretamente decisões importantes de políticas nacionais. Não podemos dizer que o poder se dá apenas do mais forte para o mais fraco, pois ele ocorre muitas vezes no próprio sentido inverso.
No entanto, usando um termo bem engeliano-marxixta, a “classe dominante” não existe como tal, uma vez que a sociedade não é organizada apenas verticalmente, mas como produto de diversos interesses, inclusive o das associações dos chamados dominados. A disputa entre as diversas associações, as quais chamaremos para fins deste texto de “guildas” é que formam o vetor resultante de poder.
Veja-se bem, aqui entra a ideia de que a mistura de elementos gera uma condição completamente diversa daquela esperada pelo simples somatório das partes, assim como o sal de cozinha não tem as características nem do sódio, nem do cloro que o constitui, mas se transforma em algo totalmente diferente. As tartarugas das estruturas sociais não sobem em árvores, mas muitas vezes não são tampouco ali colocadas intencionalmente, são escaladas pela ação de diversas forças que se debatem entre si.
As guildas são núcleos de poder que não representam a vontade de uma “classe dominante” específica, mas uma vontade pertencente à própria instituição. Como exemplo, podemos citar a Igreja Católica, que constitui um corpo próprio, bem diferente da vontade do papa, dos cardeais, dos padres ou dos fiéis.
O poder se torna mais complexo se considerarmos que existem várias guildas concorrenciais. A Igreja Católica compete com outras religiões, que por sua vez concorrem com as guildas de profissionais liberais, que concorrem com sindicatos, grupos de professores, de estudantes, de servidores públicos, etc. O somatório de todas essas associações e mais algumas vontades independentes de alguns indivíduos é que constitui a vontade de uma determinada sociedade. A “classe dominante” é, portanto, um indivíduo abstrato e inexistente.
É por isso que não podemos definir o poder dentro de um maniqueísmo entre forte e fraco, entre dominante e dominado, pois essas relações não são apenas complexas, mas verdadeiramente caóticas.
Assim, devemos procurar um outro critério para conceituar classe dominante

Desde Spencer, a sociologia lança mão de conceitos da biologia para explicar as suas teses, sendo esta talvez a ciência que mais contribuiu para compreendermos fatos, eventos e estruturas sociais. Conceitos como o darwinismo social, ou a solidariedade orgânica de Émile Durkheim, nos permitem usar exemplos tirados das aglomerações animais e vegetais, e dos sistemas orgânicos.
Seguindo essa linha e nos remetendo à biologia, devemos considerar um Estado como formado por dois tipos humanos, os hospedeiros e os parasitas. Por “hospedeiro”, consideramos um organismo que possui existência autônoma e por “parasita” aquele que vive às custas do hospedeiro.
Na sociedade humana, podemos considerar como hospedeiro aquele que produz riquezas e por parasita, o indivíduo que suga a riqueza alheia sem nada produzir.
Por definição, em uma sociedade capitalista, o Estado é parasitário, uma vez que não produz riquezas. A iniciativa privada, é hospedeira.
Existem dois times diversos que se beneficiam do estado, a guilda dos políticos, apaniguados e colaboradores e o grupo dos burocratas e tecnocratas. Existe ainda um terceiro, que é o mais importante e mais numeroso, o dos cidadãos comuns e das pessoas jurídicas, que são os que pagam a conta dos impostos e que num mundo ideal deveriam ser alvo das eventuais benesses sociais.
É claro que esses critérios se confundem, pois temos ainda relações de mútua dependência entre diversos setores estatais e privados, o que, usando-se ainda as expressões da biologia, podemos chamar de mutualismo. Por exemplo, quando dois empreendedores necessitam assinar um contrato, é necessária uma instituição acima dos interesses individuais para decidir eventuais desavenças, que de outra forma precisariam ser resolvidas a bala. O mesmo se aplica para a defesa do território, criação de leis, etc., que são efetuadas por instituições, pelo menos teoricamente, mutualistas e, pelo menos teoricamente, neutras. No entanto, temos um sem-número de atividades que possuem finalidade em si próprias e que servem apenas para funções escusas do Estado: gabinetes-fantasmas, empresas públicas, muitas vezes deficitárias e toda sorte de organismos e instituições que em uma nação se instalam sem qualquer utilidade prática.
Ocorre que o parasita depende do hospedeiro para sobreviver, morrendo a árvore, morre também a erva-de-passarinho em que nela se apóia, por isso é preciso existir um controle que leve o Estado até um limiar extorsivo, acima do qual determinados setores da economia comecem a entrar em colapso e, por fim, a economia como um todo passe a decair.
Podemos melhor compreender esse fato pela visualização do gráfico a seguir, no qual a linha contínua representa o crescimento do lucro de uma determinada empresa e a linha pontilhada, o valor de impostos por ela pago.
À medida que essa empresa enriquece, o governo tem maiores possibilidades de produzir uma maior extorsão e é isso que normalmente faz, por exemplo, criando impostos diferenciados para pequenas e grandes empresas.
O ponto de encontro das duas linhas representa o momento que a empresa fechará as suas portas, uma vez que a carga tributária se igualará ao lucro.


Como as empresas precisam sobreviver, normalmente são obrigadas a sonegar os impostos extorsivos, seja de forma direta, simplesmente evitando de diversas maneiras o aparecimento de caixa ou também subornando fiscais.
Assim, a ideia do aumento dos impostos muitas vezes não é a de produzir um melhor ambiente de negócios, financiar o aumento da economia nacional ou produzir um welfare State que redunde em um aumento de consumo e consequente aumento de produção em um círculo virtuoso, mas cumpre uma das funções escusas do Estado que é a de produzir desvios para os bolsos parasitários.
Paralelo a isso, ocorre uma grande carga extorsiva na questão das importações, que gera duas consequências; a primeira que é a do monopólio das empresas nacionais, elevando os preços pagos pelo consumidor no mercado interno, o que é uma outra forma de aumentar as taxas impositivas e a segunda que é a do incentivo ao contrabando e suas consequentes extorsões pelos órgãos policiais e por toda a cadeia de burocratas e políticos alimentada pelos achaques aos fora-da-lei.
Por fim, os hospedeiros só possuem valor para o Estado, enquanto geradores da riqueza que alimenta essa sequência de injustiças. No momento em que uma empresa começa a decair ou um indivíduo deixa de dispor de sua força de trabalho, é totalmente abandonado aos desmandos da sorte, como acontece, por exemplo, com pequenos agricultores carentes de financiamento e velhos aposentados largados como lixo nas filas de postos de saúde. O Estado torna párias todos aqueles que não contribuem para a máquina das extorsões.
Isso funcionaria indefinidamente dessa forma se não existisse um limite possível para o volume de saques, o que obriga a máquina pública a se adequar ao volume de capital produzido pela extorsão dos impostos.
Para melhor compreendermos esse fenômeno, temos a seguinte fórmula:

Dádivas do Estado
+ Custos Administrativos
+ Soma dos Butins
+ Custo da Incompetência Estatal
_________________________________
= Volume Total de Saques

Por “butins”, nos referimos a todo o capital que é desviado na forma de financiamento às funções escusas governamentais, citados anteriormente: corrupção, cabides de emprego, gabinetes-fantasma, etc.
Em um governo próximo ao ideal, que é impossível para o tempo em que vivemos, praticamente não ocorreriam butins, mas o avanço tecnológico e diversos instrumentos de controle possibilitariam uma minimização desse fator, bem como também uma redução considerável dos custos administrativos, uma vez que o tamanho do butim cresce com o tamanho da máquina administrativa.
Por incompetência estatal, nos referimos àquelas perdas que não são diretamente fruto de corrupção ou custos da máquina: viadutos inacabados, decisões erradas, maus investimentos bancários, etc.
Esse é o motivo porque, quando falamos na constituição de um Estado ideal, aqui voltamos à dicotomia do pensamento clássico liberal entre os valores sociais e os valores de proprietários, ou falando em expressões atualizadas, é dada uma ênfase que paira entre o liberalismo econômico e a social-democracia ou welfare State, sem radicalizarmos entre um e outro polo. No momento em que os dons derivam para se aproximarem dos valores dos saques, temos um estado mínimo, de modo que poderíamos prever uma decadência do Estado em algum momento futuro, se houvessem meios tecnológicos para evitar atividades escusas. Clarificando: não pode existir Estado como nós o conhecemos hoje em dia em uma sociedade em que os dons se igualem aos saques, simplesmente porque seria mais fácil que os que necessitassem de serviços pagassem diretamente por eles, chegaríamos em um capitalismo anárquico.

No entanto, a inferição acima não nos leva à ideia de que os governos deixarão de existir um dia. Em primeiro lugar porque não é possível reduzir os custos administrativos a zero devido às necessidades de mediação em diversos setores aqui apontados como as finalidades primeiras do Estado.
Em segundo lugar, concorrem dois fatores, o de que a maioria das pessoas não têm talento empreendedor, não são previdentes e são perdulárias, o que as leva a sofrerem reveses da sorte. Quando isso ocorre, não é natural que os demais indivíduos permitam a destruição alheia sem nada fazer, a Lei da Selva, por mais justa que seja do ponto de vista natural, não é um valor humano. Assim como a maior parte das pessoas corre para ajudar uma senhora que tropeça e cai na rua, a solidariedade faz parte do comportamento dos homens. Infelizmente, os reveses da sorte e os erros de escolha pessoal levam a derrocadas que precisam ser suportadas por todos os demais, sob o risco de tornar o problema ainda maior. Se um pequeno agricultor imprevidente não tem mecanismos de sobreviver a uma safra ruim, ele fatalmente irá à falência, causando a destruição de todo o seu núcleo familiar e prejudicando a economia da região. Se um trabalhador que vive do seu salário não possuir dotações que o sustentem durante períodos de doença, o problema será ainda maior, fazendo que num momento posterior, a interferência para contornar as suas agruras sejam ainda de monta mais elevada, em um custo que precisa obrigatoriamente ser arcado por toda a sociedade. Assim a atitude de seguir a ideia da frase do juiz da Suprema Corte americana, Louis Brandeis (1856-1941) que interpretou a liberdade prevista na constituição pelo “direito de ser deixado em paz”, corre o risco de acabar decaindo em um aumento dos custos sociais e econômicos.

Considerando o beco criado pelos dois extremos previstos nos pensadores liberais clássicos, podemos considerar que, ainda que existam as tendências para isso, é pouco provável que ocorra um anarquismo de moldes socialistas ou, falando de forma extrema, um anarco-capitalismo, totalmente regulado pelo mercado. O futuro não se caracterizará pela dissolvência total do Estado, mas provavelmente pela minimização dos butins e consequente extinção ou minimização das funções escusas.

Portanto, descartadas tanto as ideias de classe dominante, quanto aquelas que supõem um mercado todo poderoso, podemos visualizar as sociedades humanas por duas formas, a primeira que separa hospedeiros, parasitas e mutualistas, ou pela visão de conflito Pagadores de Impostos x Políticos, patrocinadores e apaniguados x Burotecnocratas. Enquanto aquela nos fornece como principal instrumentalização de análise, a de como reduzir o parasitismo, esta nos informa como equilibrar os conflitos sociais e reduzir as desigualdades.
Para sairmos do beco da modernidade, não podemos mais nos apoiar nas concepções criadas pelos pensadores dos séculos XVIII e XIX, pois ocorreu uma considerável mudança de foco das disputas que ocorrem nas sociedades. O futuro se dará pela resolução desses novos conflitos.


BENTHAM, Jeremy e MILL, Stuart. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural: 1979.
www.achegas.net/numero/dezessete/fabricio_neves_17.htm

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